Dizem os franceses: há restaurantes que justificam uma parada, há outros que justificam um desvio e há alguns que justificam uma viagem.
Entra-se num restaurante para restaurar as forças. Contudo, poucos freqüentadores explicitam que a restauração é também e sobretudo de caráter espiritual. Basta observar a fisionomia com a qual alguém chega a um restaurante e a fisionomia que a mesma pessoa expressa ao sair.
A restauração do espírito começa com a impregnação do ambiente. Quando se resolve ir a um restaurante, pensa-se num prato e ao mesmo tempo no ambiente. E parece-me não errar ao afirmar que as prateleiras com as garrafas de bebidas têm um papel primordial na ação de influência sobre o gastrônomo. Refiro-me aos destilados e aos fermentados. Refrigerantes estão fora disso, especialmente a Coca-Cola.
Considero sempre o caso de um apreciador equilibrado e temperante, aquele cuja vontade bem estruturada tem domínio sobre sua vontade e sensibilidade, e no seu espírito prevalecem, muito bem combinadas, a capacidade admirativa e o senso das medidas.
Como é agradável admirar aquele conjunto de garrafas de aspectos personalizados, com rótulos evocativos de belas tradições, contendo líquidos finamente elaborados durante períodos de tempo cuidadosamente observados, a partir de criativos elementos, com cores as mais sugestivas para os seus aromas e sabores. Cognac, Wisky , Ginn, Vodka, Aguardente Velha etc., são títulos dessa elite líquida.
Tem-se a impressão de que cada garrafa contém o segredo de um conteúdo exclusivo, com uma personalidade própria, uma tradição própria, um “perfume” próprio. Em outras palavras, cada garrafa parece afirmar: “Eu levo dentro de mim um tesouro único, por isso sou eu mesma, sou diferente das outras; levo em mim a minha própria história, que me confere o direito de me expor nesta prateleira afirmando que sou digna de apreciadores realmente credenciados, capazes de compreender quantos valores eu carrego”.
Há ainda, nessa nobre corte, a refinada categoria dos licores. Freqüentemente suas garrafas parecem portadoras de luzes coloridas tão densas que só permitem serem saboreadas em doses bastante comedidas. Chartreuse, Dom Benedictine, Mozart, Amaretto di Sarono...
O mais interessante é que as garrafas não brigam entre si, mas constituem uma grande harmonia. Assim consideradas as coisas, a estante acaba trazendo ao espírito a analogia com um órgão de tubos, com suas inúmeras harmonias sonoras, ora predominando os agudos, ora os graves, ora os fortes, ora os pianos.
Essa impressão parece mais intensa e profunda quando se tratam de garrafas de vinho ou de champagne.
Ao analisarmos uma garrafa de um bom vinho, temos a impressão de que, preenchida com uvas de cepas seculares, ela veio ao mundo desde uma cave profunda, penumbrosa, silenciosa, fresca, onde, durante um prolongado período, o seu conteúdo foi se aprimorando, mais ou menos como um monge que, num claustro isolado do mundo, no recolhimento e na elevação do espírito, santifica a alma antes de subir ao Céu.
Nos vinhos encanta a musicalidade dos nomes: Quinta do Vale Meão, Bourgogne Couvent, Marqués de Arviza...
Um aristocrata saberá encontrar num bom vinho a expressão de valores morais e metafísicos. Se ele ama a Deus, descobrirá reflexos do Criador na bebida e compreenderá porque o primeiro milagre de Nosso Senhor foi transformar, em Caná, centenas de litros de água no mais excelente vinho que se possa imaginar. Mais ainda, ele o degustará compreendendo por que o vinho foi escolhido para, após a Consagração, tornar-se o Preciosíssimo Sangue de Jesus Cristo.
Já o burguês saberá que se trata de algo que possui valores, comprará e até pagará caro a sua aquisição, mas terá menos facilidade para alçar-se às regiões freqüentadas pelas “águias do espírito”.
Algum socialista ou comunista característico, igualitário por definição, mas tão freqüentemente dono de polpudíssima carteira e vivendo nababescamente, se encharcará de tanto beber um bom Romanée, por exemplo, pouco se importando com os valores que aquela requintada bebida oferece. Afinal, ele odeia aqueles valores que falam de elevação e de espírito; ele quer o prazer bruto, destemperado, glutão, em uma palavra, chão. Nada mais igualitário.
Os limites deste artigo me impedem de abordar um outro mundo maravilhoso. O dos copos, taças e cálices de cristal próprios a cada tipo de bebida. É um outro “teclado” de harmonias desse mundo harmonicamente hierárquico cheio de valores.
Antes de terminar, agrada sobremaneira saber que haja um número crescente de degustações de vinhos feitas por pessoas interessadas em ressuscitar os valores tradicionais dessas maravilhas.
Sim, porque indiretamente estão reconhecendo o quanto valem as famílias tradicionais, sem as quais maravilhas assim seriam praticamente impossíveis; estão reconhecendo o valor do espírito aristocrático, que torna possível a compreensão desses valores sutis próprios às pessoas refinadas, e que acabam se dando conta de que necessitamos de uma sociedade com elite e tradição autênticas, harmonicamente desigual, e não de um igualitarismo achatado, sem harmonia e sem valores do espírito.
Indiretamente reconhecem o bem enorme que o próprio “populino” aufere com a existência de pessoas com reais qualidades culturais.
Conforme explica Plinio Corrêa de Oliveira em seu famoso livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, é de uma renovada aristocracia, que inspire nos mais simples os valores morais e espirituais realmente culturais, que o Brasil mais necessita.
3 comentários:
Muito bom! Parabéns pelo artigo.
Ótima observação! Poderia ser publicada no "Guide Michelin", o que enriqueceria espiritualmente os frequentadores de bons restaurantes e também àqueles que, como eu, não têm "gaita" suficiente para tal, mas que apreciam a boa comida.
Parabéns pelo blog!! De muito bom gosto e alto nível!!! Eliselma
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